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CÂNCER DE FÍGADO

 

Introdução

Tumores hepáticos, ou do fígado, podem ter natureza benigna ou maligna (câncer), portanto, apenas dizer que há um tumor hepático não significa necessariamente que se está falando de um câncer (doença maligna). Este texto tem por objetivo trazer alguns aspectos relevantes para esclarecer alguns diagnósticos, pois é muito comum depararmos com pessoas muito assustadas ao ver em um laudo de exame o diagnóstico de um tumor hepático.

A boa notícia é que na grande maioria das vezes, felizmente, os achados mostram lesões de natureza benigna, principalmente hemangiomas, hiperplasia nodular focal, adenomas e cistos hepáticos. Em alguns casos, porém, trata-se realmente de lesões de natureza maligna e que necessitam de alguma intervenção

Tumores benignos

Adenoma hepatocelular

É o mais importante tumor benigno a ser reconhecido. Ocorre principalmente em mulheres em idade fértil, principalmente naquelas que fazem uso de contraceptivos orais.

A maioria dos adenomas são assintomáticos e os maiores podem causar desconforto no hipocôndrio direito do abdome. Raramente, adenomas apresentam-se como peritonite e choque, devido a ruptura e hemorragia intraperitoneal. E, com pouca frequência, sofrem transformação maligna.

Suspeita-se do diagnóstico com base na ultrassonografia ou na TC, porém é necessária a biópsia para confirmação. A RM com gadoxetato é mais sensível que a TC e pode diferenciar subtipos de adenoma com maior risco de progredir para malignidade. O reconhecimento do subtipo de beta-catenina é particularmente importante porque este subtipo tem um risco de 5 a 10% de transformação maligna e deve ser ressecado.

Adenomas decorrentes do uso de contraceptivos podem regredir se o fármaco for interrompido. O tratamento cirúrgico é indicado caso o adenoma não regredir, se for subcapsular, ou ainda se tiver tamanho > 5 cm.

Hiperplasia nodular focal

É uma lesão localizada do tipo hamartoma e histologicamente se assemelha à cirrose macronodular. Em geral, o diagnóstico baseia-se em RM ou TC com contraste sendo a aparência clássica uma lesão com cicatriz central. A biópsia pode ser necessária para a confirmação e o tratamento é raramente necessário.

Hemangiomas

São geralmente pequenos e assintomáticos, ocorrem em 1 a 5% dos adultos. Os sinais e sintomas são prováveis de surgirem se tiverem > 4 cm, entre eles, têm-se: desconforto, edema e, menos frequentemente, anorexia, náuseas, saciedade precoce e dor secundária ao sangramento ou trombose. Em geral, esses tumores têm uma aparência vascular altamente característica.

Hemangiomas são encontrados acidentalmente na ultrassonografia, TC ou RM. Na TC é comum o aparecimento de uma massa hipodensa bem demarcada e, quando contraste é usado, há um realce periférico inicial seguido por um realce centrífugo posterior. Em geral, não se indica tratamento. A ressecção pode ser considerada se os sintomas são incômodos ou se um hemangioma estiver se alargando rapidamente.

Em crianças, os hemangiomas podem frequentemente regredir até os 2 anos de idade. Entretanto, os grandes hemangiomas podem, ocasionalmente, causar derivação arteriovenosa que levam a insuficiência cardíaca e, por vezes, coagulopatia de consumo. Nesses casos, o tratamento pode incluir doses elevadas de corticoides, diuréticos e/ou digitálicos para melhorar a função miocárdica, interferona alfa (por via subcutânea), remoção cirúrgica, embolização arterial seletiva e, em alguns casos, transplante de fígado.

Outros tumores benignos

Lipomas (em geral, assintomáticos) e tumores fibrosos localizados (p. ex., fibromas) raramente ocorrem no fígado.

Adenomas benignos dos dutos biliares são raros, irrelevantes, costumam ser detectados incidentalmente e, por vezes, são confundidos com câncer metastático.

Carcinoma fibrolamelar

O hepatocarcinoma fibrolamelar é uma neoplasia rara, variante típica do hepatocarcinoma e responsável por 2% das neoplasias de origem hepatocelular.

Não apresenta fatores predisponentes, acometem principalmente jovens de 5 a 35 anos (média de 23 anos), sem predominância por sexo e possui um crescimento lento.

Esta condição patológica usualmente se inicia na adolescência, sendo um achado ocasional ou apresentando-se sob a forma de massa palpável abdominal. A maioria dos tumores é encontrada em estádio avançado por ocasião do diagnóstico e a dosagem de alfa-fetoproteína geralmente é normal.

Ao ultrassom apresenta-se como massa lobulada hiperecóica, mas formas hipoecóica e isoecóica podem ser descritas. Áreas hiperecóicas centrais podem estar relacionadas com calcificação. À tomografia computadorizada observa-se grande massa bem definida, lobulada, hipodensa, apresentando contrastação heterogênea em vários graus, com áreas mais hipodensas centrais representando cicatriz fibrosa

Metástases hepáticas

Metástases hepáticas são comuns em muitos tipos de câncer, especialmente os de trato gastrintestinal, mama, pulmão e pâncreas. Os primeiros sintomas geralmente são inespecíficos (perda ponderal, desconforto em hipocôndrio direito), mas são, por vezes, os primeiros sintomas do câncer primário. Metástases hepáticas são suspeitadas em pacientes com perda ponderal e hepatomegalia, ou com tumores de provável disseminação hepática. Em geral, o diagnóstico é feito por método de imagem, com mais frequência ultrassonografia ou TC helicoidal com contraste ou RM com contraste. Em geral, o tratamento envolve quimioterapia paliativa.

Hepatocarcinoma 

Introdução e epidemiologia

 

O carcinoma hepatocelular (CHC) é a neoplasia maligna primária mais comum do fígado e tem a sua carcinogênese associada a alguns fatores, como a infecção crônica pelo vírus da hepatite B, cirrose hepática alcoólica e a hemacromatose hereditária. A sua apresentação clínica tende a estar associada à uma tríade clássica: dor em quadrante superior direito, perda de peso em um curto período e aumento do volume abdominal às custas de líquido ascítico.

No ano de 2020, o Brasil registrou 10.764 mortes por câncer hepático. A sua maior parcela (57%) ocorreu em pessoas do gênero masculino pertencentes à faixa etária dos 60 a 69 anos e autodeclarados com a cor branca (52%). 

Fatores de risco

            Neste tópico vamos falar sobre as principais vias de oncogênese para o CHC e, para começar, trataremos da infecção crônica pelo vírus da hepatite B (VHB).

O VHB tem como principal mecanismo carcinogênico a habilidade de integrar o seu DNA ao genoma do hepatócito sadio e, a partir disso, promover mutações oncogênicas no ciclo celular dessas células. Quando a proteína HbxAg do vírus se liga ao p53 (guardião do genoma e supressor de tumor), teremos uma perda no processo de reparo celular e a apoptose, permitindo então que haja a replicação de células com mutação. Quanto mais tempo a infecção permanecer ativa, maior será o número de células mutadas se multiplicando, e, então, aumentando a chance do CHC no paciente portador desta infecção.

Outro fator de risco importante é a infecção crônica pelo vírus da hepatite C (VHC), que difere do VHB principalmente por não conseguir se integrar ao genoma do hospedeiro. A sua replicação ocorre apenas no citoplasma celular e a teoria mais aceita para a carcinogênese neste caso é através dos efeitos da inflamação crônica e da lesão hepatocelular contínua. O CHC apenas se desenvolve, portanto, na infecção crônica pelo VHC, quando a cirrose hepática já está estabelecida. 

A hemocromatose hereditária (HH) é uma doença genética do metabolismo do ferro, caracterizada pelo aumento da absorção de ferro pelo intestino, ocasionando deposição do mineral nos órgãos humanos. E ela também está correlacionada à carcinogênese do CHC. Para entender essa relação, precisamos estabelecer uma lógica quanto à depleção efetiva dos estoques de ferro antes ou depois do desenvolvimento da cirrose hepática:

Quando a depleção efetiva dos estoques de ferro ocorre antes do desenvolvimento da cirrose hepática, há uma redução na incidência de CHC. Por outro lado, quando a depleção efetiva dos estoques de ferro só ocorre quando a cirrose já está estabelecida, não há redução na incidência de CHC. O risco de morte por CHC em pacientes portadores de HH é de até 45%.

O álcool também é um fator de risco importante para o desenvolvimento do CHC, especialmente quando há uma grande ingesta etílica por períodos prolongados e que há uma evolução para um quadro de cirrose hepática alcoólica. Outros fatores de risco também se relacionam com o CHC: tabagismo, toxinas exógenas (aflatoxina e microcistinina), esteroides anabolizantes, esteato-hepatite alcoólica e não alcoólica, idade e aquisição do VHB.

Apresentação clínica

O paciente portador do CHC tende a manifestar alguns sinais e sintomas, como por exemplo:

- Dor em quadrante superior direito;

- Perda de peso em curto espaço de tempo;

- Aumento do volume abdominal às custas de líquido ascético;

- Piora do estado clínico geral do hepatopata cirrótico compensado;

- Manifestações paraneoplásicas como febre e caquexia, hipercalcemia, eritrocitose, leucocitose, hipoglicemia e alteração de exames do perfil hepático.

Diagnóstico

A alfafetoproteína (AFP) é uma proteína oncofetal produzida pelo fígado e saco vitelino que tem como curso natural a queda sérica após o nascimento. Quando existe uma dosagem aumentada desse marcador tumoral em pacientes cirróticos, há uma grande probabilidade de esse achado sugerir a presença de um CHC. Além desse contexto, ele também pode estar aumentado em metástases hepáticas, tumores de testículos ou ovários e na gravidez.

            Outro método capaz de identificar o CHC, quando presentes lesões sólidas acima de 2cm, é a ultrassonografia transabdominal. Quando associado ao Doppler, é possível ainda esperar uma vascularização arterial aumentada.

            A ressonância magnética (RNM) e a tomografia helicoidal trifásica são exames contrastados dinâmicos que avaliam o parênquima hepático em 3 fases: pré-contraste, arterial e portal. Embora o fígado possua 75% de sua irrigação proveniente da veia porta, 25% provêm da artéria hepática, e o CHC é quase que exclusivamente vascularizado pela artéria hepática, logo, quando vemos uma lesão sólida num fígado cirrótico que se impregna com contraste na fase arterial, possui >2cm e na fase venosa/portal sofre “washout”, sugere-se CHC. A exemplo podemos visualizar a TC helicoidal trifásica abaixo:


Rastreamento

            O rastreamento para o CHC está bem indicado para pacientes que pertencem a população de risco. Isto é, pacientes cirróticos sempre devem fazer USG transabdominal + dosagem de AFP a cada 6 meses; enquanto portadores crônicos do VHB, com histórico familiar de CHC, negros >20 anos e asiáticos >40 anos em alguns casos devem fazer a cada 6 meses a USG transabdominal + dosagem de AFP, como sintetizado no esquema abaixo:

 


Estadiamento e tratamento

            O estadiamento do CHC é feito principalmente através da classificação de Child-Pugh e CLIP (Cancer of the Liver Italian Program Stagning System), e podemos visualizar as tabelas logo abaixo.

Classificação CLIP.

Resultados entre 0-3 traduzem um prognóstico; enquanto entre 4-6 indicam uma doença muito avançada.

Classificação Child-Pugh.

Pontuações entre 5-6 são classificados como Child-A; 7-9 como Child B e entre 10-15 como Child C. Quanto maior a pontuação, maior é a gravidade do câncer.

            O CHC é um tumor extremamente agressivo e a sobrevida média de uma pessoa sem tratamento encontra-se entre apenas 6 e 20 meses. Para tanto, a depender de cada caso, existem algumas opções de tratamento possíveis, como:

- Ressecção/hepatectomia em cirróticos Child A e alguns Child B ou em não cirróticos que toleram perda de tecido hepático

- Terapias não cirúrgicas, como a injeção tumoral de etanol, ablação tumoral por radiofrequência, termoablação, quimioembolização transarterial e o uso de SORAFENIB.

- Transplante hepático para pacientes com maior disfunção hepática, Child B ou Child C.

Referências:

  1. Câncer do fígado. INCA, 2022. Disponível em: https://www.inca.gov.br/tipos-de-cancer/cancer-de-fígado. Acessado em: 04 de maio de 2022.
  2. Neoplasias hepáticas: caracterização por métodos de imagem. Radiologia brasileira – CBR, 2008. Disponível em: http://www.rb.org.br/detalhe_artigo.asp?id=877. Acessado em 04 de maio de 2022.
  3. Brazilian Journal of Oncology: Exploring the link between  anabolic-androgenic steroids abuse for performance improvement  and  hepato-cellular carcinoma: a literatura review
  4. CLÍNICA médica: hepatologia. 11. ed. Sao Paulo (SP): Ed. SJT, 2011. 226p., il. (SJT preparatório para residência médica)

  

Autores:

 Gabriel Ayres


Bruno Machado

5 semestre UFBA

Vice presidente


Revisores: Amanda Almeida

 

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